Como as substâncias tóxicas da cerveja Belorizontina atuam no corpo das vítimas

Quatro mortes foram confirmadas até o momento; Vendas foram proibidas pela Anvisa

A intoxicação pelos etilenoglicóis presentes em um lote de cervejas da marca Belorizontina, produzidas pela cervejaria Backer, ainda assusta os mineiros. Até o momento foram confirmadas quatro mortes e existem 18 notificações de pacientes com suspeitas da chamada síndrome nefroneural. As bebidas da fabricante com validade igual ou posterior a agosto de 2019 tiveram a venda suspensa pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O Ministério da Agricultura, através de análises, comprovou a contaminação pelas substâncias monoetilenoglicol e dietilenoglicol em 21 lotes de oito marcas diferentes da companhia.

A patologia afeta o intestino, os rins e o sistema nervoso do indivíduo de maneira preocupante. Saulo Nardy, membro da Academia Brasileira de Neurologia (ABN) e do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein, explica detalhadamente o que é o etilenoglicol e como ele atua no organismo da pessoa intoxicada.

Segundo o neurologista, ambos os subtipos da substância encontradas na cerveja (monoetilenoglicol e o dietilenoglicol) são incolores, inodoros e têm um sabor levemente adocicado. Os indivíduos que os ingeriram, portanto, talvez tenham sentido a cerveja um pouco mais doce que o normal, mas nada que pudesse chamar a atenção.

Na prática, o etilenoglicol é usado como anticongelante em processos industriais, além de estar presente em solventes para corante, limpadores de parabrisa, pastas de polimento para sapato e alguns tipos de lubrificantes.

“Embora a substância seja um álcool, não se assemelha ao etanol, consumível e presente em bebidas como a cerveja. Simplesmente não era para estar ali”, ressalta Saulo.

Uma vez ingerida, a intoxicação se dá via gastrointestinal. No intestino, onde a substância é absorvida, pode provocar queimação, náusea, vômito e diarreia. Na sequência, leva a um quadro mais grave de embriaguez: a pessoa fica muito lenta, desequilibrada, com a fala amolecida e muita tontura. Em alguns casos, já nessa fase, inicia-se um estado de torpor. Tudo isso em até 12 horas após o consumo.

Feita a primeira metabolização no fígado, o etilenoglicol se transforma em oxalato e passa a agir com maior agressividade, acarretando, em menos de 24 horas, à insuficiência renal pela formação de cristais que atacam o rim. Aproximadamente 72 horas depois, os nervos e o cérebro também viram alvo, o que pode resultar em paralisia facial, tetraparesia (perda movimento dos braços e pernas), embaçamento ou perda da visão, entre outras graves consequências.

Por ser tratar de uma síndrome com tamanha rapidez e de difícil identificação em casos que a ingestão não é sabida, o tratamento é um desafio para os médicos. Saulo explica que técnicas como a lavagem gástrica devem ser aplicadas se a pessoa for atendida logo após o consumo, para reduzir a absorção pelo intestino.

Outra possibilidade é a ingestão endovenosa de etanol, pois, enquanto está ocupado com sua metabolização, o fígado não consegue processar o etilenoglicol rapidamente, dando mais tempo para a reação do organismo e para a adoção de outras medidas, como a hemodiálise. “Parece um contrassenso, mas, basicamente, ‘embriagar’ de propósito a pessoa no período de algumas horas após a intoxicação pode ser útil”, analisa.

No caso dos pacientes mineiros, que se dirigiram ao hospital horas depois do consumo da cerveja, a equipe médica fez uso de métodos para combater a acidose metabólica do corpo, além de hemodiálise.

“Como esse tipo de intoxicação é extremamente raro, é compreensível a demora para descobrir o que motivava os casos. Infelizmente, ninguém sabia do que se tratava e os pacientes chegavam ao hospital depois de várias horas do consumo, dificultando o tratamento”, comenta Saulo.