Por Walter Polido*
Os dispositivos promulgados pela Lei 13.874/19 – Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, já vigiam no ordenamento jurídico nacional desde a Constituição Federal de 1988, artigo 170 e seguintes. Interessante, contudo, o fato de que no Brasil, muitas vezes, uma lei ordinária precisa explicitar aquilo que já se encontra no sistema, para só então chamar a atenção de todos. A partir dessa reflexão, as normas que consagram os princípios da livre iniciativa entre as partes pactuantes, agora reconduzidas pela mencionada lei, são modernizadoras, de fato? E a atividade seguradora está ou não sob o comando dessas novas normas?
Há mais de uma posição sobre o tema, neste primeiro momento. Os conservadores, sempre ávidos pelo positivismo exacerbado e – porque não dizer? – acomodados com o “status quo” estabelecido e conhecido há décadas, entendem que não. A nova lei, numa visão minimalista, segundo eles, não se aplica aos segmentos econômicos regulados pelo Estado. Desse modo, o mercado de seguros estaria fora da modernidade e continuaria sob o julgo supremo e absolutista do já combalido Decreto-Lei n.º 73/66 e também daqueles promulgados posteriormente, Decreto 60.459/67 e Decreto 3.633/2000, e também da Susep.
Sob esse viés, o órgão regulador exerce e continuaria exercendo as suas funções exatamente como elas estão previstas nos mencionados ordenamentos, inclusive impondo às seguradoras os clausulados padronizados para os diversos ramos de seguros. Nada de mudanças, diante desse entendimento, sendo que o Brasil continuaria afastado da modernidade no setor de seguros, apesar de sua importância relevante para a sociedade do século XXI, prevalecendo o pensamento conservador.
O Estado “sabe”, o Estado “determina” e o privado simplesmente “obedece”. A primazia das autarquias e das agências, conforme o pensamento conservador, é incontestável, em que pese o anacronismo “embolorado” dessa afirmação. Importante ficar assentado, desde logo, que a lei em comento não excluiu a atividade seguradora e, por essa razão, o entendimento minimalista não prosperará, de forma alguma.
Para os liberais, por sua vez, a lei é maximalista e disruptiva, ou seja, ela atinge todas as atividades econômicas e não poderia ser diferente se o País pretender, de fato, desinfetar o ranço do passado, alçando voo para a “pós-modernidade”. Importante ficar esclarecido que mal alcançamos a modernidade, sendo que os países líderes já se encontram na “pós-modernidade” e partindo, aceleradamente, para a geração 5G, assim como para a indústria 4.0 e envolvendo também o segmento de seguros. É preciso que apressemos o passo, portanto.
O tema “liberdade na elaboração de clausulados de coberturas de seguros”, recorrente nos meus textos, livros, palestras e aulas, constitui a mola propulsora para lançar o mercado nacional no patamar dos mercados desenvolvidos ou para mantê-lo com o estigma do atraso no qual ele se encontra, se nada for feito. Os “produtos padronizados” pela Susep e os “produtos não-padronizados”, mas dirigidos por ela através de “listas de verificações” restritivas e anacrônicas, cuja obediência fidedigna resulta no registro ou não de cada um deles, são a prova inconteste do subdesenvolvimento do País no setor.
Já tivemos inúmeras oportunidades de demonstrar as inconsistências técnico-jurídicas encontradas nos diversos modelos em operação no mercado, todas elas prejudiciais aos segurados-consumidores e que também impulsionam as demandas judiciais. O fenômeno da judicialização, neste contexto, não é a causa, mas a consequência de vários fatores somados: clausulados mal redigidos; ausência de parâmetros objetivos de subscrição; deficiências na comercialização; hipertrofia do valor do preço do seguro como fator determinante na contratação; não fidelização das partes celebrantes, sendo que neste último fator estão também incluídos os segurados na rede causal dos problemas. Falta cultura sobre seguros no País, em todos os níveis e isso também precisa ser modificado e sob os auspícios do próprio mercado de seguros, o principal interessado nessa promoção. Quanto mais conhecido for o seguro, maior será o grau de contratação dos diferentes modelos. Esse instrumento se apresenta, até hoje, como a ferramenta mais eficaz de garantia de interesses vários, ainda sem substitutivos econômicos plausíveis.
A Lei 13.874/19 traz aspectos significativos para as relações econômicas, inclusive reinaugurando o viés liberal já contido no artigo 170 e seguintes da CF, o qual sempre esteve muito apartado da realidade brasileira, na medida em que a sociedade viveu à sombra do Estado, em praticamente todos os níveis e setores. Buscando se justificar através da narrativa da oferta de proteção ao cidadão, o Estado e suas organizações administrativas se imiscuíram na vida cotidiana, ditando “como fazer”, “como produzir” e “como consumir” e de maneira tão abrangente que se tornou praticamente impossível estabelecer parâmetros fora dessa campânula protecionista, mas, ao mesmo tempo, asfixiante, inclusive da inteligência humana no aspecto da inovação.
A interferência estatal demasiada nas diferentes atividades econômicas privadas traduz-se pela burocratização dos procedimentos, acrescentando custos desnecessários, além de criar embaraços na produção de novos modelos e na assunção de novos procedimentos, ainda que eles já tenham sido testados em outros países, com êxito conhecido. Os monopólios e mesmo os oligopólios nascem, crescem e desfrutam de vantagens financeiras nesse ambiente, sufocando qualquer iniciativa que tente suplantar esse paradigma sabidamente nefasto para os consumidores.
O empreendedorismo é severamente combatido nesse patamar de padronização, na maioria das vezes, porque os agentes públicos não conseguiriam atender à demanda dos novos processos, preferindo estagná-los e conduzi-los ao padrão único, este mais facilmente acolhido nos escaninhos da administração pública e para os fins dos registros e (ou) das homologações. A multiplicidade, benéfica para os usuários, afronta a rotina estagnante do Estado. A má qualidade dos produtos e dos serviços é o resultado nesse padrão norteador e os consumidores pouco ou nada podem fazer e sequer têm condições de reagir.
Há, até hoje, apesar do avanço inquestionável alcançado desde a privatização dos serviços de telecomunicações no País, discursos discordantes e, mais precisamente, sob o viés daquilo que já foi alcunhado, acertadamente, de “órfãos do Estado”. Ora, apesar dos desacertos e dos serviços ainda não prestados em conformidade com as bases celebradas – e contra isso os consumidores devem contestar e lutar sempre de modo a alcançarem o direito de usufruir daquilo que efetivamente pagaram – quem desejaria retornar ao serviço de telefonia estatizado, aos planos de expansão, à Embratel estatal, já de longínqua lembrança? A disrupção foi total, sem dúvida.
Se as agências reguladoras setoriais, incluindo a de telecomunicações, não tivessem sido aparelhadas politicamente, assim como continuam sendo desde a criação delas, a qualidade dos serviços já estaria em patamar de conformidade, assim como acontece nos países modernos e politicamente maduros. As agências e a direção delas devem se pautar por procedimentos e regras determinadas através de política de Estado e não de governos partidários.
No setor securitário, desde a quebra do monopólio estatal do resseguro, ocorrida através da Lei Complementar 126/2007, as seguradoras nacionais, especialmente aquelas do setor bancário, deixaram de operar em grandes riscos, preferindo comercializar apenas produtos de seguros de massa, padronizados pela Susep e vendidos nos balcões de seus bancos. Com a perda do controle acionário do Governo, do então IRB-Brasil Re, as seguradoras, especialmente as acionistas brasileiras, já anunciaram a possível venda de suas ações, apesar de sempre acenarem pela continuidade. O IRB-Brasil Re somente se tornará efetivamente uma empresa privada, a partir do momento no qual o governo deixar de ter qualquer controle sobre ele.
Quando da desmonopolização, o processo inicial apresentou acomodações de interesses egoísticos, puramente domésticos e típicos de países subdesenvolvidos. Enfim, ocorrerá a efetiva abertura do resseguro quando essas amarras remanescentes deixarem de existir. Ainda persiste, por exemplo, a reserva de cessão aos resseguradores locais, cujo mecanismo foi concebido apenas de modo a preservar os interesses do IRB e de suas acionistas, o qual teve de ser estendido aos demais resseguradores com essa mesma natureza empresarial, em face do princípio da isonomia constitucional.
Não há mais razão alguma para a continuidade da reserva, apesar de que o procedimento, para ser alterado, necessitará de uma nova lei complementar e esta com o seu rito especial e sabidamente dificultoso em face do Congresso e do desconhecimento dos parlamentares sobre a matéria resseguro. O recente Decreto n.º 10.167, de 10 de dezembro de 2019, o qual revogou o anterior 6.499/2008, ampliando o percentual de cessão aos resseguradores eventuais, deu mais um passo à internacionalização efetiva do resseguro no País. Através dele, o Estado devolveu às cedentes o peso da responsabilidade pelas escolhas feitas por elas. Enfim, devolveu a efetiva gestão dos negócios aos particulares, na medida em que as seguradoras privadas devem arcar com as consequências, em face da “security” representada pelos parceiros por elas escolhidos. Ao Estado, apenas a prerrogativa de determinar quem pode ser “ressegurador eventual”.
O mercado de seguros, em relação à produção da sua atividade-fim – as diferentes bases contratuais de seguros – passa por engessamento estatal há décadas. Durante os 70 anos de monopólio estatal, o ressegurador único determinava as bases de coberturas para os seguros diretos no mercado e, após a abertura parcial duramente conquistada em 2007, a Susep tomou para ela a função e tinha, até a promulgação do Decreto 13.874/19, presença marcante nessa tarefa. O Estado, portanto, cioso de suas prerrogativas mandatárias, ainda que anacrônicas em face dos avanços ocorridos na contemporaneidade, não perdeu tempo nesse quesito.
A Susep impôs o seu particular entendimento acerca dos contratos de seguros para o País, começando pela formatação dos contratos: Condições Gerais + Condições Especiais + Condições Particulares + Condições Específicas. Sem a observância restrita dessa receita estruturante, dificilmente um novo produto conseguia ser registrado naquela autarquia. O modelo de apólice “all risks”, por exemplo, sempre encontrou toda a sorte de obstáculo para a sua homologação na Susep, apesar de alguns segmentos de seguros praticamente utilizarem, nos países desenvolvidos, apenas esta formatação e justamente porque ela se apresenta como a mais adequada e com maior grau de coberturas para os consumidores-segurados.
A Susep, por sua vez, sempre entendeu que o modelo de riscos nomeados e todos eles repartidos em diversos textos para comporem a apólice, seria o padrão aceitável por ela, rechaçando o modelo “todos os riscos”, ainda que ele se apresentasse de forma muito mais simplificada, concisa e objetiva para os segurados. Com essa concepção restritiva e que jamais seria acolhida pela sociedade consumidora em outros países desenvolvidos, cada ramo, inclusive, somente podia dispor de um único texto de Condições Gerais, sendo que a diversidade de riscos e situações encontradas nos diferentes interesses seguráveis não comporta esse tipo de estratificação, típica de produtos bancários, mas não efetivamente de seguros.
Há, nesse campo da ingerência desmedida do Estado, em atividade tipicamente privada, incentivo à “financeirização” da atividade de seguro no País, cujo procedimento reduz os diferentes tipos de seguros a modelos estratificados, certamente desconformes com a realidade fática de cada situação de risco concreta. Não existe clausulado padrão de cobertura securitária que possa acolher perfeitamente toda a sorte de riscos, ainda que eles sejam os mais homogêneos possíveis.
Essa pretensão estatal, inclusive, denota não só desconhecimento acentuado da atividade a que se propõe regular, como também não encontra respaldo nos conceitos mais comezinhos acerca daquilo que se convencionou chamar de “subscrição” ou “underwriting”. Quando a Susep, através de sua Circular n.º 458, de 19.12.2012, “revogou” a modalidade de “seguros singulares”, não só imprimiu esse desacerto nas operações securitárias do País, distanciando completamente o Brasil dos demais países do mundo, como também incentivou a já referida “financeirização” dos diferentes ramos de seguros, na medida em que eles são praticamente iguais em todas as seguradoras.
A força estatal da padronização dos clausulados é algo incompreensível hoje, em que pese nunca ter sido um dia para as mentes mais refinadas em seguros, sendo que praticamente todas as seguradoras que operam no País, nacionais e estrangeiras, sempre acolheram sem nenhum movimento mais representativo de protesto ou modificador esse “status quo”, o qual se mostrou altamente pernicioso para o setor brasileiro, incontestavelmente. Não há argumento favorável que resista a esse cenário e justamente em razão da importância que os seguros privados têm para a sociedade brasileira.
O preço do seguro, no mesmo patamar de clausulados idênticos, padronizados pelo Estado, se tornou o fator mais importante e único. Essa hipertrofia relativa ao preço, portanto, trouxe inúmeros prejuízos ao possível desenvolvimento dos seguros. Não há mercado que possa se desenvolver, intelectualmente, com este cenário estagnante e muito próximo de países sem liberdade democrática.
A Lei 13.874/19, por sua vez, determinou o rompimento dessa realidade nefasta. Ainda que ela apresente inconsistências jurídicas, na medida em que determinadas matérias não poderiam, em princípio, ser modificadas através desse instrumento (o DL-73/66, por exemplo, em tese somente poderia ser alterado ou derrogado através de lei complementar), ela tem a propriedade de trazer o novo pensamento, a disrupção em relação aos velhos procedimentos, todos eles já com demonstrações claras como a luz solar que não são benéficos à moderna sociedade. Essa lei pode modernizar o Brasil, em vários aspectos, mas no que concerne ao seguro, objeto deste texto, não há a menor dúvida sobre essa consequência benéfica. A nova norma deixa transparente a necessidade urgente de ser empreendida certa dose de ousadia pelo mercado de seguros e de modo a viabilizar a transposição de patamares e com o objetivo de quebrar paradigmas obsoletos, substituindo-os por outros inovadores, ao menos, para serem testados livremente.
O Poder Público, precisamente a Susep, tem outros papéis no século XXI e extremamente relevantes. O Estado-liberal, não significa o Estado anárquico. Para a Susep a normatização e a fiscalização das seguradoras, especialmente na área econômico-financeira, através das provisões técnicas necessárias e das reservas técnicas de sinistros, como pontos referenciais. A higidez do sistema requer esse tipo de presença estatal, especializada e firme.
A mutualidade deve ser protegida em face de todos os interesses dos aderentes consumidores, mas não passa mais pela imposição das bases contratuais nos negócios securitários, cuja atividade, privada na sua essência, deve ser exercida exclusivamente pelas seguradoras. O ordenamento jurídico já dispõe sobre os limites objetivos das relações contratuais, impondo condições conhecidas de todos: Código Civil (arts. 113, 187, 421, 422, 424, 2.035, para citar os principais relacionados ao tema); Código de Defesa do Consumidor (arts. 1º, 4º, I e III, 6º, 30, 34, 35, 47, 48, 51, IV, §§ 1º e 2º, 53, 54). Assim, o disposto no artigo 36, “c”, do Decreto-Lei-73/66, derrogado pelo artigo 174 da Constituição Federal, ainda que não fosse, não poderia mais prevalecer no mercado nacional. A Susep não pode e não deve se imiscuir na área contratual, assim como ela vinha realizando, cujo resultado não se mostrou favorável aos consumidores de seguros do País. Os produtos de seguros, os clausulados de coberturas produzidos, apresentam qualidade questionável sob o olhar técnico e jurídico apurado, com raras exceções pontuais.
Em novembro de 2019, a Associação Brasileira de Gerência de Riscos (ABGR), quando da produção do XIII Seminário Internacional em São Paulo, trouxe a debate o tema da Lei de Liberdade Econômica e os seus reflexos no mercado de seguros. Foram ressaltados pelos painelistas os mais variados aspectos da Lei, até mesmo traçando comparativos com outros mercados da América Latina, Chile e Colômbia, por exemplo, assim como Europa e EUA. O estágio atual do chamado “good local standard” tem gerado toda a sorte de conflitos e, até mesmo, tem propiciado a judicialização, acentuadamente. Entre os pontos abordados no mencionado Seminário, foram destacados aqueles que determinavam a padronização excessiva no mercado segurador nacional, assim como:
(a) Circular Susep-565/2017 – determina que a cobertura “all risks” de Riscos Operacionais somente pode ser ofertada para empresas com Limite Máximo de Garantia (LMG) superior a R$ 100 milhões, sendo que a determinação invade, injustificadamente, o âmbito da livre estipulação da política de subscrição das seguradoras e impede que empresas em geral tenham acesso a um produto muito mais consistente em termos de coberturas;
(b) Circular Susep-395/2009 – determina, de forma exaustiva, quais coberturas podem ser oferecidas pelos ramos de seguros, sendo que esse procedimento impede o desenvolvimento de “programas de coberturas”, inclusive para as empresas multinacionais nacionais, as quais acabam colocando seus riscos através de suas subsidiárias no exterior, sempre que possível, e o procedimento prejudica todos os agentes brasileiros do setor, os quais perdem a respectiva participação nos negócios (seguradores, corretores de seguros, brokers de resseguro, resseguradores locais, advogados, reguladores de sinistros);
(c) Produtos padronizados de todos os ramos, cujas estruturas são extremamente obsoletas e prejudiciais à objetividade e transparência exigidas inclusive pela legislação consumerista – diante das Condições Gerais + as múltiplas Condições Especiais + e com maior número ainda de Condições Particulares e, por criação exclusiva da Susep, + Condições Específicas;
(d) Os produtos ditos “não-padronizados” passam pela formatação de “Listas de Verificação”, elaboradas pela autarquia, as quais são herméticas e acabam conduzindo os produtos a modelos também padronizados, sem alternativas;
(e) A formatação estanque dos ramos e suas coberturas passam pelo crivo da Susep, que está, aparentemente, muito mais preocupada com a homogeneização das estatísticas que elabora para a iniciativa privada do que propriamente com os interesses dos consumidores, que poderiam estar melhor atendidos através de programas de coberturas únicos. Sobre este ponto, é necessário indicar, que em qualquer país do mundo, quem elabora estatísticas – ferramenta essencial para a atividade seguradora – são as respectivas Federações das seguradoras “privadas” e não o Estado através de recursos do erário público;
(f) Circular Susep-458/2012 – a autarquia extinguiu os chamados “seguros singulares”, contribuindo para o estreitamento dos procedimentos de subscrição técnica, essenciais e inerentes à atividade seguradora, cujo procedimento, inexplicável – e que, ao mesmo tempo, não resiste a qualquer pauta que provoque a razão e a técnica subjacente aos seguros – conduziu todos os riscos a um padrão único e estratificante – quais produtos bancários que efetivamente os de seguros não são. Este procedimento, certamente, não é encontrado em quaisquer mercados maduros e desenvolvidos, e o Brasil precisa se desvencilhar dele, urgentemente;
(g) A Susep, no seu papel primordial e essencial, deve se ater à normatização e fiscalização das provisões técnicas e das reservas de sinistros, deixando a elaboração dos clausulados de coberturas para a atividade seguradora privada, assim como acontece em todo o mundo. O ordenamento jurídico nacional, repise-se, já oferece os limites objetivos para a atuação das seguradoras.
O movimento “desenvolvimentista”, perpetrado pelo anacrônico e já desfalecido Decreto-Lei-73/66, notadamente o disposto no artigo 36, “c”, não pode mais prevalecer e, se apesar de o referido dispositivo já se encontrar derrogado pelo disposto na Constituição Federal de 1988, artigo 174, a Lei 13.874/2019 trouxe novo lume à questão, não restando mais dúvida a respeito da liberdade de elaboração dos clausulados. As médias e as grandes empresas estão ciosas diante da esperada nova postura do mercado segurador nacional e, por que não, todos os demais segurados, já que a liberdade na comercialização de produtos – sem a condução estratificante do Estado – beneficiará, e muito, a todos.
Não se advoga, neste texto, pelo Estado liberal que nada fiscaliza, sendo que tudo pode e nada é coibido. Não é essa a função da Lei 13.874/19. Quando se busca o alcance da liberdade da atuação econômica no ordenamento pátrio, são encontradas diversas normas que já atuam a favor dos consumidores. Sistematicamente, o ordenamento conjuga os princípios da autonomia privada com a função social do contrato.
O disposto no artigo 421 do Código Civil é prova disso: a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. A Constituição Federal, conforme o artigo 5º, XXXII, dos direitos e garantias fundamentais, determina que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. O Código de Defesa do Consumidor, art. 4º, I, reconhece a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo. A boa-fé constitui o cânone hermenêutico quer nas relações de consumo, quer nas relações paritárias, dentre elas as de seguros.
Enfim, o ordenamento jurídico já apresenta aparato fundamental em proteção dos segurados e contra o abuso nas relações, de amplo sentido e com mão dupla. Não cabe ao Estado, portanto, determinar condições contratuais de seguros sob a alegação de que estará protegendo, especificamente, os segurados brasileiros. Esse pensamento conservador e estatizante não tem mais condições de prosperar na contemporaneidade e sequer se justificou um dia.
Faz-se necessário mencionar ainda nesse estudo da Lei 13.874/19, determinada situação que já causou perplexidade extrema nas mentes mais liberais, na medida em que mesmo para os segurados de grandes riscos, todos eles assistidos por corretores de seguros especializados, além de advogados atuantes em seguros, persistia a proibição da Susep no tocante à utilização de termos e condições estabelecidos individualmente pelas partes: segurado e seguradora.
Ainda que o segurado, na condição de parte celebrante interessada no melhor produto de seguro e que efetivamente paga o prêmio, desejasse estabelecer bases diferenciadas de clausulados para os seus riscos e, até mesmo, com a aquiescência de uma seguradora, esta dificilmente emitiria a apólice segundo os termos e condições ajustadas, fora do produto padrão que tinha registrado na Susep.
De modo a contornar a situação, a seguradora emitia a apólice com as condições contratuais padronizadas, acrescentando um sem número de cláusulas particulares, todas elas praticamente revogando os textos homologados pela Susep. A apólice, assim formalizada, era composta por um emaranhado de termos e condições, criando alta complexidade para o entendimento do contrato avençado. Essa situação é completamente irreal, inexplicável e insustentável. Quem paga tem o direito de buscar o melhor produto para garantir os seus riscos. O Estado não pode impedir essa pretensão, tampouco gravar de ônus a seguradora que resolver atender o seu cliente. As partes devem ser livres para pactuarem os termos e condições de seus contratos de seguros.
Nenhuma seguradora, todavia, mesmo nessa situação-limite, se sentia confortável em transgredir a norma imposta, a qual previa que todos os clausulados devem ser previamente registrados e homologados na autarquia, sendo um por ramo de seguro. Assim, ainda que as partes celebrassem acordo estipulando as bases contratuais que desejavam ver formalizadas na apólice, paradoxalmente essa negociação era proibida pelo Estado, a Susep, sendo que a seguradora se via obrigada a emitir o contrato de seguro com os clausulados já aprovados, ainda que houvesse a adição de número acentuado de cláusulas particularizadas e com o fito de suplantarem as deficiências originais encontradas no produto padrão e sem lograr êxito, certamente. Ora, os segurados pagam o prêmio do seguro e, ainda assim, o Estado determina qual o produto que eles devem adquirir, limitando a escolha. Esse modelo é incongruente e não resiste a qualquer filtro de razoabilidade, repise-se.
Era preciso mudar e a Lei 13.874/19 fez isso
Através da abertura na atuação contratual que se apresenta pelo novo ordenamento, e de modo a contrapor aquelas mentes apegadas ao passado, ao protecionismo exacerbado do Estado – e que já se mostrou mais pernicioso do que eficiente -, fica muito claro que as seguradoras que não atuarem segundo os padrões técnicos requeridos pela atividade, ficarão fora do mercado. Muitas outras oferecerão produtos de qualidade superior e já encontrados e devidamente testados nos mercados internacionais maduros. A Lei 13.874/19 constitui, na sua essência, uma ponte para a pós-modernidade, também na atividade seguradora brasileira. É necessário que seja implementada, urgentemente, até mesmo porque já está vigendo.
Através dos novos procedimentos, agora liberados, será possível colocar o mercado de seguros brasileiro no caminho do desenvolvimento, em prol de todos os consumidores de seguros do País. Não é só o volume da produção de prêmios, que é altamente representativo, que conta nessa avaliação. Os modelos de clausulados atuais, todos eles estatizados, padronizados, uniformizados, desinteligentes e pouco inovadores já se esgotaram no tempo e no espaço, sendo que o fenômeno da judicialização contra o seguro é prova inconteste dessa situação. E, só não há mais ações judiciais de seguros sendo propostas, porque as Cortes de Justiça do País ainda são lentas, os processos são onerosos e os segurados não podem esperar.
A modernização do sistema é bem-vinda através da Lei 13.874/19, sendo que o movimento não pode permanecer apenas no discurso dos representantes do Governo. É necessário que os agentes do mercado nacional empreendam, rumo ao desenvolvimento efetivo. As ferramentas existem e estão disponíveis, sendo que as seguradoras internacionais já operam de maneira técnica adequada em outros países; bastará que elas nacionalizem os procedimentos, aplicando os mesmos padrões que oferecem nos seus países de origem aos cidadãos. Não haverá como retroceder, uma vez iniciado o caminho da modernização. Todos sentirão a diferença e serão beneficiados com o acesso a produtos de seguros de primeira linha. É necessário começar, portanto.
Mas, qual seria a escala de prioridade para esse tema dentro das seguradoras? Uma vez que está alinhado a tantos outros que despontam, neste momento de reformulação geral das bases estruturais do mercado de seguros: Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Segmentação das Seguradoras para fins de Regulação Prudencial, Autorregulação dos Corretores de Seguros, Sandbox regulatório, entre outros. Ora, os clausulados representam o cerne da atividade seguradora, o produto efetivo produzido por ela. Todo o resto é decorrência e os consumidores de seguros precisam ser atendidos com a oferta de produtos perfeitos tecnicamente e essencialmente úteis.
Neste ano, o processo de reformulação das bases contratuais dos seguros deverá sofrer forte desenvolvimento. As seguradoras que se adiantarem, muito provavelmente terão maior facilidade nos negócios, uma vez identificadas pelos corretores de seguros profissionais e interessados na oferta dos melhores produtos de seguros para os seus clientes. Será a primazia da lei do mercado, não mais direcionada pelo Estado.
Em face dessa realidade, a especialização concentrada dos profissionais se apresenta como condição primordial e essencial para todo o mercado de seguros do Brasil.
* Walter Polido é diretor da Conhecer Seguros e docente da Unisincor (Universidade Corporativa Sincor). Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, advogado, técnico-especialista em seguros e resseguros, consultor da Polido e Carvalho Consultoria em Seguros e Resseguros, Polido também é árbitro em seguros e resseguros de diversas Câmaras de Mediação, Conciliação e Arbitragem, parecerista, professor universitário e escritor.