Por Carla Benedetti, advogada, mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP
A reforma da previdência, publicada em 12.11.2019, por meio da Emenda Constitucional nº 103, nitidamente enrijeceu os requisitos para concessão de diversos benefícios previdenciários. Bem como desvalorizou, substancialmente, a renda mensal destes pela aplicação da nova forma de cálculo.
Benefícios como aposentadoria especial sofreram sensivelmente quanto aos requisitos, ao se instituir uma idade mínima. Isso tornou quase que inócua sua previsão, que retirou as premissas que sustentavam uma aposentadoria diversificada ante a exposição a riscos que afetam a saúde e reduz a longevidade do trabalhador no mercado de trabalho. Houve ainda reduções de salários na pensão por morte, sendo excluído, até o término da regra de transição, o benefício de aposentadoria por tempo de contribuição.
Observa-se, desse modo, dentre inúmeras alterações, que mudanças paramétricas sucessivamente têm estreitado o alcance aos benefícios. Não é demais lembrar que milhões de brasileiros também se encontram na informalidade sem qualquer guarida da legislação previdenciária. Muitos destes cidadãos, na velhice desprovida de saúde adequada, poderão no futuro depender unicamente dos benefícios assistenciais que não pressupõem custeio prévio, tais como: Benefício de Prestação Continuada – BPC – e demais auxílios que serão disputados entre uma fatia considerável da população carente.
No cenário de reforma previdenciária, historicamente, inúmeros países, incluindo uma parcela da América Latina, transformaram sua previdência de repartição para de capitalização. Para o regime de repartição, em que todos contribuem e distribuem os benefícios econômicos entre si, caracteristicamente, observa-se o pacto geracional como forma de financiamento em que os jovens, e iniciantes no mercado de trabalho formal, sustentam no decorrer de suas vidas, por meio de reiteradas contribuições ao fundo, os atuais aposentados para que, após completarem os requisitos para a obtenção dos benefícios previdenciários, possam se aposentar.
A geração anterior usufruiu de uma ascensão mais facilitada, todavia, a falta de um planejamento organizado e forte direcionamento do Estado, inclusive no que se relaciona à dívida pública, trouxe dificuldade ao Estado de direcionar os recursos previdenciários, acrescido às Desvinculações de Receitas da União – DRU – que subtraem uma parcela substancial do orçamento da Seguridade Social, no montante de 30%, e que poderiam ser utilizados para otimização dos benefícios dos contribuintes.
Nesse sentido, em que pese já imperava, antes da reforma da previdência, várias injustiças sociais, com condições mais dificultosas da população mais humilde de obter direito aos benefícios previdenciários, na próxima geração, o cenário será ainda muito mais desafiador, visto que, inclusive, a tendência é que ocorra uma sensível diminuição no número de contribuintes, tanto pelo ponto de vista econômico, ante ao crescente desemprego e economia aquém da desejável, quanto pelo fato de que uma população miserável necessitará de mais proteção assistencial junto ao sistema de Seguridade social.
A expectativa de vida do brasileiro tem crescido, o que corrobora para aumento da faixa de idosos no país. A diferença substancial, se comparado aos países desenvolvidos, é que no Brasil há uma grande camada da população que sobrevive com uma aposentadoria de 1 até 2 salários-mínimos, o que corresponde a 70% dos aposentados, e que não possuem ainda outra fonte de renda, sendo a realidade econômico-social da Europa, muito diversa e mais rica. Para tanto, faz-se necessário que as reformas, tanto na legislação como na configuração social, busquem ser assertivas para que se obtenham ganhos reais, e que seja condizente com o panorama político-econômico que se apresenta.
Com a redução dos valores da aposentadoria e a mudança rígida dos requisitos etários, questiona-se se o problema do equilíbrio das contas da previdência estaria sendo solucionado, ou, simplesmente, sendo substituído por outros problemas na esfera social que mais tardar se intensificarão por conta de mazelas sociais que dependerão de outros movimentos, também exigindo destaque financeiro. Nesse contexto, uma forte tendência é o surgimento da previdência privada como segunda via à Previdência Social, de caráter não obrigatório, e que se encontra inserida dentro do financiamento do próprio seguro que cada contribuinte deve verter para composição de sua própria faixa de riscos sociais.
Em tal situação, não haveria a assunção do princípio da solidariedade em tal regime, visto que não há contribuição da coletividade em prol dos demais, mas somente de sua cota parte com os benefícios em suas previsões financeiras, devidamente calculados e indexados com os produtos do mercado financeiro. Logo, em uma das perspectivas, a dependência da flutuação do mercado mobiliário possibilitaria maior rendimento aos segurados e, similar a qualquer ação adquirida, há possibilidade de maior aporte, plano personalizado e portabilidade. Dessa forma, esta opção nem sempre se mostra desvantajosa e deve ser analisada a depender do contexto.
De outro modo, o sistema de repartição seria importante na medida em que muitos brasileiros ainda não possuem a visão ou a doutrina de poupar o suficiente para a aposentadoria, agindo assim o Estado de forma paternalística, forçando também os imprudentes a contribuir, ao passo que ainda reduz a incerteza sobre o ritmo da atividade econômica futura, bem como o rumo dos resultados dos investimentos, os índices de inflação e a duração da vida de cada um.
De outro modo, com mais empregos, há maiores contribuições previdenciárias, e, ao mesmo tempo, menores custos de cobertura para a população em que se está temporariamente desprotegida. Ao mesmo tempo, a nova política social precisa se tornar produtivista, para, assim, minimizar a necessidade e dependência da população em relação aos benefícios do governo. A direção da política caminha no sentido da implantação de um modelo normativo de seguridade social assistencial dos mínimos e cobertura protetora, com um incremento dos instrumentos de previsão privada que tendem a abarcar cada vez mais os níveis profissionais de proteção social.
Salienta-se, todavia, em que pese haja uma tendência em se capitalizar a Previdência Social também no Brasil, a necessidade, quase que imperiosa, de se manter políticas básicas e indispensáveis a determinadas camadas da população, de grupo homogêneos mais vulneráveis e que estejam atinentes com o regime de repartição, sob a tutela do Estado. Nesse sentido, tal como já tratou Anthony Giddens, em “Um debate global sobre a terceira via”, poderia se conceber uma combinação entre aposentadoria básica financiada por uma repartição simples e a aposentadoria profissional financiada por capitalização referente à renda, com maior grau de diversificação, havendo mais facilidade na redistribuição dos valores arrecadados.
Portanto, as mudanças estruturais nos regimes previdenciários devem estar embasadas em uma conjuntura política econômica que esteja umbilicalmente relacionada com o sistema de Seguridade Social, sob a perspectiva de um capitalismo humanista.