Confira o artigo escrito por *Anne Caroline Wendler, advogada e sócia do Rücker Curi Advocacia e Consultoria Jurídica
O princípio da boa-fé objetiva é essencial nos contratos e tem sua aplicação mais evidenciada no contrato de seguro. Há quem diga que a boa-fé objetiva é a própria alma do contrato de seguro, seja na sua formação, execução ou até mesmo posteriormente.
Não obstante o Código Civil disponha já na parte geral, que os contratos devem ser interpretados conforme a boa-fé e de que os contratantes são obrigados a guardar os princípios da probidade e boa-fé (artigos 113 e 422), referido princípio também é expressamente previsto na parte específica dos contratos de seguro (artigos 765 e 766).
Nos contratos de seguro, o dever de ética incide no grau mais elevado de troca de informações, desde a proposta, a contratação e durante toda a relação contratual, especialmente nos contratos de seguro de pessoas, no qual a declaração de saúde do segurado, por exemplo, pode influir diretamente na aceitação da proposta pela seguradora.
Dos artigos destinados especificamente ao contrato de seguro, a redação do art. 765, do Código Civil destina-se às partes contratantes, sem distinção. Já o art. 766, direciona comando ao segurado sobre as consequências das declarações inexatas ou omissas que influenciem na contratação, realçando a importância das declarações pré-contratuais, em decorrência do proponente possuir informações relevantes que somente este pode prestar ao segurador.
A máxima boa-fé, que é da essência do contrato de seguro, reside no dever de informar que deve ser estritamente cumprido, sob pena de desnaturação do instituto do seguro.
A boa-fé objetiva constitui um modelo de conduta social, padrão ético de comportamento que se impõe concretamente a todo cidadão. Segundo Judith Martins Costa (2018, p. 43), o agir com boa-fé objetiva concretiza as exigências de probidade, correção e comportamento leal, hábeis a viabilizar um adequado tráfico negocial, consideradas a finalidade e a utilidade do negócio em vista do qual se vinculam, vincularam, ou cogitam vincular-se, bem como o específico campo de atuação em que situada a relação obrigacional.
A boa-fé objetiva tem múltiplas funções dentro da relação obrigacional e o Código Civil de 2002 positivou três grandes funções. No art. 113, a boa-fé funciona como meio auxiliador para a interpretação dos negócios, dispondo que estes devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. No art. 422, verifica-se a função integrativa – a boa-fé como integradora de novas normas de conduta do contrato, os efeitos secundários, os deveres anexos principalmente. E, no art. 187, se estabelece a função da boa-fé no controle do abuso de direito.
Dentre as múltiplas funções, a do art. 187 tem a função mais importante do Código Civil Brasileiro de 2002, que é a vedação ao abuso de direito, prevendo que também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
O Projeto de Lei do Contrato de Seguro (PL n. 29/2017), que regulará o seguro privado no Brasil e, por conseguinte, revogará o Código Civil na parte que dispõe sobre referido contrato, prevê de forma detalhada os aspectos do seguro, bem como também renova o papel da boa-fé na relação securitária.
Sobre os dispositivos do Projeto de Lei n. 29/2017, com menção expressa da boa-fé, tem-se o art. 6º, parágrafo único; art. 40; art. 50, §2º e art. 62. O art. 6º após conceituar o contrato de seguro, trata da boa-fé objetiva já no parágrafo único, determinando que as partes adotem postura segundo a boa-fé. O art. 40 enfatiza o dever informativo das partes, as quais devem agir com lealdade e boa-fé. O art. 50, §2º, ao consignar o afastamento de sanção (resolução do contrato), na hipótese de o segurado comprovar sua boa-fé, trata da boa-fé subjetiva. Por fim, o art. 62 refere-se à cláusula geral, ao dispor que a interpretação e execução do contrato deve ser orientada pela boa-fé.
A ideia de boa-fé objetiva foi construída no Direito Alemão e inspirou várias legislações, inclusive, o nosso Código Civil de 2002. De modo que o Direito Contratual Brasileiro se diferencia um pouco dos demais Códigos latinos, acerca da noção apenas subjetivista da boa-fé, em razão da influência do Direito Alemão, passando pelo Direito Português, atribuindo à boa-fé a noção objetiva.
É comum que se confunda a boa-fé subjetiva com a boa-fé objetiva. A boa-fé subjetiva é consciência ou credo de estar agindo em conformidade com as normas do ordenamento jurídico, consiste num estado de consciência do indivíduo (forma de conduta) e a boa-fé objetiva consiste numa norma de conduta, adotada como princípio de Direito.
Judith Martins-Costa ensina que boa-fé subjetiva se traduz na designação de um fato que o sujeito tem a convicção, ainda que errônea, de estar agindo corretamente, de acordo com o Direito (2018, p. 279). Como, por exemplo, a posse de boa-fé, adquirente de boa-fé, cônjuge de boa-fé, se enquadram em boa-fé subjetiva.
Ainda sobre a distinção entre boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva, a subjetiva se contrapõe à má-fé, enquanto a objetiva se contrapõe à ausência de boa-fé, e não, à má-fé. A violação da boa-fé objetiva se dá quando há atuação contrária aos padrões de conduta esperados, ainda que não haja má-fé ou culpa.
O princípio da boa-fé constante do Código Civil de 1916, no capítulo de seguro, inclusive, por vezes era interpretado como boa-fé subjetiva. Somente com o Código de Defesa do Consumidor e posteriormente com o Código Civil de 2002, é que a conotação do termo boa-fé, passou a ser de boa-fé objetiva.
Com a mudança do panorama a partir do Código Civil de 2002, a nova perspectiva permitiu afastar-se o equívoco de uma grande parte da doutrina ao extrapolar a oposição boa-fé/má-fé do campo da boa-fé subjetiva ao da boa-fé objetiva, cuja confusão impedia até então de se retirar as consequências deste princípio.
Feita a diferenciação de boa-fé subjetiva e objetiva, o disposto no caput do art. 766 do Código Civil, demanda a observância da mais estrita boa-fé e veracidade em todas as circunstâncias e declarações. Tal dispositivo não faz ressalva sobre ter que se verificar se a omissão ou inexatidão das informações foram de boa-fé (subjetiva) ou má-fé, uma vez que regida pela boa-fé objetiva regra de lealdade.
O caput do artigo 766 do Código Civil, é definitivo quanto às consequências de uma omissão, ou de uma declaração inexata ou incompleta: a perda do direito à garantia e ao prêmio vencido e, por conseguinte, o desfazimento do contrato, dada a aplicação da boa-fé objetiva. Por força de tal dispositivo, entende-se que não se deve prestigiar a má-fé, ou seja, não se deve beneficiar aquele que podendo prestar informações verídicas e completas, não o faz.
Segundo Adilson Campoy, seguindo o caput do artigo 766, do Código Civil, ao segurador basta a prova de que houve omissão de fato conhecido quando da declaração pré-contratual, ou de que o fato conhecido foi inexato ou informado de modo incompleto. E assim, para que a regra do parágrafo único não se antagonize com a regra do caput, é necessário reconhecer que o benefício que ele concede depende da prova de que, embora ausente a boa-fé objetiva, presente a boa-fé subjetiva – antítese da má-fé -, e esta prova caberá ao segurado ou ao seu beneficiário (2014, p. 38).
O tema se revela mais pertinente, em razão da Súmula 609, do STJ que dispõe que “a recusa de cobertura securitária, sob a alegação de doença preexistente, é ilícita se não houve a exigência de exames médicos prévios à contratação ou a demonstração de má-fé do segurado.”
Ao exigir exames prévios ou a comprovação de má-fé, o STJ parece não observar os contornos da boa-fé objetiva, realizando a análise pela vertente da boa-fé subjetiva, decidindo pela necessidade de comprovação de uma má-fé ou realização de exames prévios, mesmo nas hipóteses em que a violação da boa-fé objetiva já resta configurada. Isto é, quando incontroverso o conhecimento do segurado acerca de doença preexistente à contratação.
A consequência do entendimento da Súmula 609 do STJ, de que, mesmo ciente da doença preexistente, somente com a comprovação da má-fé ou a realização de exame prévio, o segurado perderá a garantia, importa no enfraquecimento do princípio da boa-fé objetiva e até mesmo do próprio contrato de seguro, do qual se espera a mais estrita boa-fé.
A boa-fé objetiva não contracena com a caracterização da má-fé, pois como já mencionado é uma regra de conduta, é o dever de lealdade, standart de conduta exigível a ambas as partes nos contratos, principalmente no contrato de seguro.
Referências citadas:
CAMPOY, Adilson José. Contrato de Seguro de Vida. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
*Anne Caroline Wendler é advogada e sócia do Rücker Curi Advocacia e Consultoria Jurídica; Pós-graduada em Direito Processual Civil pela PUCPR; Pós-graduada em Direito Público e Privado pela Emap; Pós-graduada em Direito Processual Civil pela FGV; Pós-graduada em Direito do Estado pela LFGUniderp; Pós-graduada em Gestão de Direito Empresarial pela FAE; Pós-graduada em Direito Contratual de Empresa pela UNICURITIBA; Mestre em Direito Empresarial na UNICURITIBA; Especialista em Direito Imobiliário na Universidade Positivo; Integrante da Comissão de Direito Securitário da OAB-PR e Grupo Regional Sul da AIDA; Autora do Livro Boa-Fé Objetiva nos Contratos de Seguro de Vida publicado em 2021 pela Editora Juruá.