Confira o artigo escrito por *Pedro Gerhard, Pesquisador da Embrapa Meio Ambiente
Dia 22 de março é o Dia Mundial da Água. Tal sua importância, que a ONU dedicou inteiramente dois dos seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: o ODS-6, dedicado ao fornecimento de água potável e ao saneamento, e o ODS-14, tratando da vida na água dos mares e oceanos. Mais do que isso, outros ODS incluem metas diretas e indiretamente ligadas à água: da produção de alimentos, ação sobre as mudanças climáticas até a proteção de ambientes aquáticos.
Pode-se concluir que a água está conectada a todos os 17 ODS: ela é um recurso, um mediador e um meio. Sua presença, para além de quando abrimos a torneira, está na energia usada para escrever este texto e no alimento que comemos.
Uma forma de entender o complexo papel do líquido está no conceito “nexo água-energia-alimento”. Cunhado pela Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) em 2014, o conceito sublinha seu papel no bem-estar humano, na redução de pobreza e no desenvolvimento sustentável. Água é usada para produzir energia. Água é usada para produzir alimento. Energia é usada para coletar, transportar e tratar água, demandada nas cidades por pessoas e indústrias. O nexo aponta com clareza para as demandas setoriais pela água. Para assegurar que a água continue disponível em qualidade e quantidade, fluindo de rios e poços, seu uso deve ser feito racionalmente, de forma sustentável.
Em termos globais, a água não se consome em definitivo, ela é ingerida e transpirada, ela escoa, infiltra, evapora, precipita, permeia e viaja pelo planeta. É aí que o papel da agropecuária se destaca. Ela ocupa porções consideráveis da superfície dos continentes e também é a atividade que usa a maior parte da água doce extraída de rios e de poços. Porém, no Brasil, a maior parte da atividade agropecuária é dependente da água das chuvas, e grande parte da água retorna ao meio ambiente localmente, por infiltração, evaporação ou transpiração. E na agricultura irrigada, ainda que as magnitudes sejam outras, ocorre o mesmo. Apenas uma fração da água total que passa no sistema produtivo é exportada como alimento.
Permanece uma questão e um desafio. A questão é entender quanto, quando, como e onde essa água retorna ao meio. O desafio é melhorar continuamente os sistemas de produção para serem mais eficientes no consumo de água e que seus efluentes sejam livre de contaminantes.
A indagação é, de forma nada abstrata, enfrentada diariamente pelo produtor rural – quanta água o gado precisa, quando é melhor plantar, como evitar as enxurradas e proteger o solo, onde guardar a água em excesso, quando a terra não pode absorver mais? A provocação é, também de forma nada abstrata, motivação diária para pesquisadores que trabalham nas ciências agrárias, florestais, ambientais e outras afins. Quais plantas são mais eficientes no uso da água, ou toleram secas mais extensas? Quanta água pode ser retida no solo se técnicas inovadoras de plantio forem desenvolvidas? Onde e quando irrigar cada cultura, para incrementar o aproveitamento da água pela cultura e minimizar o consumo de energia?
Notem-se as questões impostas pelas mudanças climáticas. Em primeiro lugar é preciso reduzir as emissões ou aumentar o sequestro de gases do efeito estufa dos sistemas de produção utilizados atualmente. Segundo, é preciso adaptar os sistemas de produção de alimentos às alterações no regime de chuvas, na intensidade de eventos de precipitação e estiagem e das temperaturas médias; essas alterações já são observadas atualmente.
Respondida a questão, enfrentado o desafio, outra dimensão da água pede consideração. É a dimensão espacial, sua dispersão, movimentação, transporte e armazenamento entre ecossistemas (agroecossistemas para floresta), entre paisagens rurais (pecuária extensiva para pecuária leiteira) e entre regiões geográficas (Norte para o Centro-Oeste). Dado que a agricultura ocupa porções significativas do Brasil (e em muitos outros países), considerar esta dimensão espacial coloca novas questões para a Ciência.
Compreender os sistemas produtivos como áreas inter-relacionadas com seu entorno, com seus ecossistemas vizinhos. Estudar o papel da propriedade rural no contexto das bacias hidrográficas e outras áreas especiais, como áreas úmidas e de recarga de aquífero. Elucidar como os padrões de uso da terra afetam as taxas de evaporação, transpiração e precipitação em uma região, para então afetar outra que pode estar a milhares de quilômetros. Mas é aqui que se tornam necessários outros atores: gestores públicos, legisladores, agentes técnicos e a sociedade organizada.
A pesquisa pode nortear políticas públicas e auxiliar sua instrumentação, mas ainda será preciso escrever leis, criar ferramentas para sua execução, criar planos de governo, orientar e fiscalizar as atividades dos diversos setores da sociedade.
“Todos moram em uma bacia hidrográfica”. Este bordão de educação ambiental, já bem repetido em outros países, é verdadeiro também para nós, no Brasil. Ele aponta para o fato de que nossas ações (e inações) influenciam a água, seja a consumindo diretamente, como energia ou como alimento. Esta água atua em um espaço geográfico, um sistema hidrológico. Não difere no contexto da propriedade rural, que abriga ecossistemas de produção agrícola e, outros, naturais.
O objetivo primeiro da propriedade rural é claro – produzir alimentos e outros insumos úteis. Isto pode, e deve, cada vez mais considerar as diversas dimensões da água. Seja água como recurso de uso direto, seja como um mediador, que transporta e transfere energia e nutrientes entre os componentes do sistema solo-planta-atmosfera, seja como um meio, que propicia a criação de ambientes aquáticos e áreas úmidas.
Esses espaços naturais conservados também podem ser uma fonte de renda direta ou indireta, pois oferecem diversos benefícios (materiais e imateriais) para as pessoas, mesmo as que estão distantes do meio rural. Isto é, só temos a ganhar quando entendemos que a água não é apenas um recurso, um insumo indispensável para a geração de produtos, mas também um elemento atuando em várias dimensões, capaz de permear, conectar, criar e transformar o planeta e seus habitantes.
*Pesquisador da Embrapa Meio Ambiente. Atua em estudos sobre serviços ecossistêmicos em paisagens rurais, com foco na interação entre o espaço rural e recursos hídricos e ambientes aquáticos, incluindo análise de qualidade de água e restauração ecológica de ecossistemas.